Hortências

Na parede as hortências secam amarradas pelos pés e ganham os tons do sangue que desce à cabeça. Não venta, as flores não balançam como mártires, mas pouco a pouco hipnotizo-me por um pêndulo imaginário enquanto um devaneio me fisga pelo tornozelo e me arrasta a um local desértico, de repente sou o rastejo pela areia — a serpente que se esconde por baixo da terra  — e no escuro (depois de trinta e nove anos) me dou conta de que basta piscar os olhos para voltar ao quarto e enumerar desesperadamente as coisas que têm de ser feitas (sem começar a fazê-las), desesperadamente recordando o deserto que me veio de não sei onde a se interpor entre mim, as hortências e o dia seguinte, em breve o piso de madeira me distrai com devaneios outros, no chão os meus chinelos sempre em total desordem um em relação ao outro me fazendo pensar para que lado vão meus pés desamarrados — em que momento um se emancipou do outro (em que momento um sequestrou-se ao deserto e o outro ficou para lembrar de que amanhã é dia de faxina, contas, correio). [25 de janeiro de 2023]

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Criadora

Larissa Fonseca e Silva, 1998. Nascida em Caldas, no sul de Minas Gerais, crescida dentre livros e montanhas. Mestra em Teoria Literária e Crítica da Cultura pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) e doutoranda em Literatura Portuguesa na Universidade de São Paulo (USP). "Crio com a ponta dos dedos, no raio do sol vejo a magia da poeira e sei que há sentido no decompor das coisas pois até os resquícios dançam." Registro e guardo aqui.