Delia: Circe por Cortázar

"Um gato acompanhava Delia, todos os animais sempre se mostravam submissos a Delia, não se sabia se era afeto ou dominação, andavam perto dela sem que ela olhasse para eles. Mario uma vez percebeu que um cachorro se afastava quando Delia ia acariciá-lo. Ela o chamou (era no Once, à tarde) e o cachorro veio manso, talvez contente, até os dedos dela. A mãe dizia que Delia havia brincado com aranhas quando pequena. Todos ficavam assombrados, até Mario, que as temia pouco. E as borboletas pousavam no cabelo dela — Mario viu duas numa única tarde, em San Isidro —, mas Delia as afugentava com um gesto leve. Héctor lhe oferecera um coelho branco que logo morrera, antes de Héctor. Mas Héctor se atirou em Puerto Nuevo um domingo de madrugada. Foi nessa época que Mario ouviu os primeiros comentários. A morte de Rolo Médicis não havia interessado a ninguém, visto que meio mundo morre de síncope. Quando Héctor se suicidou, os vizinhos viram coincidências demais [...]. Para completar, fratura do crânio, porque Rolo caiu de repente ao sair do vestíbulo dos Mafara, e, embora já estivesse morto, a pancada brutal contra o degrau foi outro detalhe horrível. Delia havia ficado dentro da casa, estranho não se despedirem na porta, mas de toda maneira estava perto dele e foi a primeira a gritar. Héctor, em compensação, morreu sozinho, numa noite de geada, cinco horas depois de ter saído da casa de Delia, como todos os sábados."


Trecho do conto "Circe", de Julio Cortázar.
Em Bestiário, em Todos os contos - volume 1.
Tradução por Heloísa Jahn.
Companhia das Letras, 2021.
Páginas 121-122.

Formulário de contato (para a página de contato, não remover)

Criadora

Larissa Fonseca e Silva, 1998. Nascida em Caldas, no sul de Minas Gerais, crescida dentre livros e montanhas. Mestra em Teoria Literária e Crítica da Cultura pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) e doutoranda em Literatura Portuguesa na Universidade de São Paulo (USP). "Crio com a ponta dos dedos, no raio do sol vejo a magia da poeira e sei que há sentido no decompor das coisas pois até os resquícios dançam." Registro e guardo aqui.