
O tempo é uma cadela ensandecida que devora os próprios filhotes — a cadela Ugolina, como a nomeou o Ricardo Reis recriado por Saramago. Tudo se transforma, e com violência. As águas plácidas da poesia ricardiana, por exemplo, convertem-se em mar bélico: é o fascismo dos anos 1930, do qual Ugolina também se torna símbolo. Mas o tempo, igualmente, age na sutileza: dia após dia, faz esquecer. No romance saramaguiano, é um Fernando Pessoa já morto quem propõe a medida do esquecimento: se levamos nove meses para nos formarmos no ventre materno e no pensamento dos que nos esperam, seria esse o período necessário para que deixássemos de ser lembrados após morrermos. São duas, portanto, as mortes. Em outras palavras, o tempo, insaciável, mata e ainda deixa os ossos para depois.