Metamorfoses, n° 1

O sol que tudo altera
    
I

Tardes de verão, tardes de calor imenso... "O calor, como uma roupa invisível, dá vontade de o tirar". Bernardo Soares, semi-heterônimo pessoano [1], foi quem, numa mansarda lisboeta, registrou a frase cerca de cem anos atrás. Também registrou: "A vida real apoquenta-me como um dia de calor. Há uma certa baixeza no modo como apoquenta".

II

Bernardo Soares, mensageiro do tédio contemporâneo [2]; o tempo derretendo gota a gota, evaporando em seguida sem deixar vestígio. De tédio e calor, o Meursault de Camus [3], perturbando o equilíbrio do dia, mataria um árabe a sangue frio. Décadas depois, o entediado protagonista de Campo de sangue, escrito por Dulce Maria Cardoso, lembraria que “com o calor há sempre quem mate por razões alheias à vontade, o calor ferve o sangue que, uma vez derramado, é rapidamente pó, um pó que se entranha facilmente na calçada”. Bloom, o igualmente entediado anti-herói da antiepopeia Uma viagem à Índia, de Gonçalo M. Tavares, corrobora: “A luz mexe em tudo, mexe na loucura e no tédio (altera-os)”. Do que advir, portanto, a culpa deve ser do sol.


III

Uma das primeiras formas de tédio existencial, conforme Lars Svendsen em A filosofia do tédio, foi a acédia, uma espécie de letargia diabólica [4] que acometia os monges medievais. O meio-dia seria especialmente propício a ela. Sonolentos, afastados das suas orações e, em consequência, da presença divina, os religiosos não apenas cometeriam uma grande ofensa a Deus como, também, estariam suscetíveis a todos os outros pecados. Nos séculos XX e XXI, na literatura ocidental, a luz do sol, perdendo o símbolo de revelação intelectual que tivera no Renascimento e Iluminismo, readquire e atualiza essa ideia de tentação e maldade: na nova concepção, não há paraíso, não há utopia tecnocientífica, não há sentido moral na existência humana; só o que há de ser revelado é a perturbação em seu estado mais bruto. É tempo de anti-heróis: os homens não têm jeito. Apenas um pouco mais tecnológico, segue desvairado o carro de Faetonte.




Notas: [1] Livro do desassossego, Fernando Pessoa. [2] Abordei o tédio contemporâneo em minha dissertação de mestrado, da qual esta postagem é um derivado. [3] O estrangeiro, Albert Camus. [4] Assim considerada pelos religiosos, que a atribuíam ao daemonium meridianum, o "demônio do meio-dia".

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Criadora

Larissa Fonseca e Silva, 1998. Artista entre teceres e textos, doutoranda em Literatura Portuguesa (USP). "Crio com as pontas dos dedos, no raio do sol vejo a magia da poeira e sei que há sentido no decompor das coisas pois até os resquícios dançam". Registro aqui.