Metamorfoses, n° 2

Cadáveres adiados


Boa parte dos poemas de Mensagem [1] traz personagens com glória em latência, isto é: personagens históricos “presentificados” que, consciente ou inconscientemente, estão prestes a dar um grande contributo à história portuguesa. Ao menos, à história portuguesa que Fernando Pessoa escolhe privilegiar. Dentro da ideia de predestinação, cumprem seu destino épico ou martirial. Se não o tivessem feito, cairiam sob a acusação de “D. Sebastião, Rei de Portugal”:

Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?

Interessante, porém, é observar que essa imagem surge, com outro sentido, em duas versões de um poema de Ricardo Reis  heterônimo pessoano que, pela via da imperturbabilidade e da inação, é o avesso da epopeia e é antítese, portanto, do D. Sebastião de Mensagem. Numa das variantes [2]:

Leis feitas, estátuas altas, odes findas —
Tudo tem cova sua. [...]
[...]
O que fazemos é o que somos. Nada
Nos cria, nos governa e nos acaba.
Somos contos contando contos, cadáveres
Adiados que procriam.

Para Reis, ser cadáver adiado não é opção, mas condição humana. Sendo o fim sempre o mesmo — a transformação em pó —, o melhor é evitar o desgaste antes da hora. Assim, se D. Sebastião, no poema “Segundo: O Quinto Império”, exclama: 

Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa,
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!

Ricardo Reis registra:

Feliz o a quem, por ter em coisas mínimas
Seu prazer posto, nenhum dia nega
A natural ventura!

Em última análise, porque já não lidam com a inconstância inerente à vida, os cadáveres é que são felizes

Felizes, cujos corpos sob as árvores 
Jazem na húmida terra,
Que nunca mais sofrem o sol, ou sabem  
Das doenças da lua.


Notas: [1] A edição que possuo da obra (e que aparece nas fotografias) é a de Cleonice Berardinelli (Rio de Janeiro: Edições de Janeiro, 2014), que respeita a ortografia da edição prínceps; aqui, porém, reproduzi e inseri os links para os poemas do Arquivo Pessoa, disponíveis online. [2] Os poemas de Ricardo Reis não têm títulos, mas, novamente, deixei próximos às citações os links para consulta. Ambas as variantes (a outra é esta aqui) também podem ser conferidas na edição de Luiz Fagundes Duarte, disponibilizada gratuitamente pela Imprensa Nacional.

Formulário de contato (para a página de contato, não remover)

Criadora

Larissa Fonseca e Silva, 1998. Artista entre teceres e textos, doutoranda em Literatura Portuguesa (USP). "Crio com as pontas dos dedos, no raio do sol vejo a magia da poeira e sei que há sentido no decompor das coisas pois até os resquícios dançam". Registro aqui.