Pausas outonais

Ilhas, n° 1



A Ilha dos Amores camoniana nem era ilha, em um sentido estritamente geográfico e mapeável, nem era "dos Amores". No primeiro caso porque era móvel: para que ficasse no caminho dos nautas lusíadas na volta para Portugal, Vênus arrasta uma de suas ínsulas divinas para o Oceano Índico (IX, 52):

De longe a Ilha viram, fresca e bela,
Que Vênus pelas ondas lha levava
(Bem como o vento leva branca vela)
Para onde a forte armada se enxergava;
Que, por que não passassem sem que nela
Tomassem porto, como desejava,
Para onde as naus navegam a movia
A Acidália, que tudo enfim podia. 
[1]

Esse pedaço flutuante de terra apresenta, em sua descrição, fauna e flora tanto portuguesas, que eram paisagens pátrias para Camões, quanto mediterrânicas, inspiradas pelas paisagens literárias greco-latinas [2]. E "dos Amores" não era, ao menos não a princípio, pois essa denominação não aparece nenhuma vez no poema: a ilha foi assim nomeada, e assim ficou conhecida, nas leituras pelas quais passou. 

Detalhe da pintura "Ilha dos Amores" (c. 1908), de José Malhoa.

Trata-se de uma ilha de sonho, onde as ninfas, flechadas a mando de Cupido e treinadas por Vênus, a mestra experta, entreterão os nautas com jogos de sedução, sexo, banquete e profecias. A Ilha dos Amores também é, por vezes, considerada utópica [3], uma vez que retrata um paraíso terreal e permite ainda, pelo casamento, a divinização (logo, eternização) dos navegadores. Mas a Ilha é, acima de tudo, metáfora da própria epopeia [4], que torna os feitos grandiosos também memoráveis ao eternizá-los em texto. Eis o prêmio (IX, 89): 

Que as Ninfas do Oceano tão fermosas,
Tétis e a Ilha angélica pintada,
Outra cousa não é que as deleitosas
Honras que a vida fazem sublimada.
Aquelas preminências gloriosas,
Os triunfos, a fronte coroada
De palma e louro, a glória e maravilha,
Estes são os deleites desta Ilha.

 

Notas: [1] Os Lusíadas, Luís de Camões. Para as citações, usei a edição do poema atualizada por Alexei Bueno (Nova Fronteira, 2018). [2] Sobre o assunto, conferir, por exemplo, o verbete "Episódio da Ilha dos Amores", de Vítor Aguiar e Silva, disponível no Dicionário de Luís de Camões (Leya, 2011). [3] São muitas as formas de ler — ou não ler — a utopia na Ilha de Vênus. Sugiro como estudos que aceitam a utopia tanto o verbete supracitado quanto o artigo "Utopia e História: Os Lusíadas (Camões) e Uma viagem à Índia (Gonçalo Tavares)", de Helena Carvalhão Buescu, no livro Poesia contemporânea e tradição Brasil-Portugal (Nankin Editorial, 2017). [4] Maria Vitalina Leal de Matos, em Tópicos para a leitura de Os Lusíadas (Almedina, 2014), discorre sobre o assunto e considera, também, a Ilha dos Amores como metáfora para a ausência de premiação, visto ser uma ilha fantástica criada e desmanchada pelo próprio Camões. O poeta sabia que, da vida real — por vezes ríspida, por vezes injusta, como tanto lamentara nos seus cantos —, bem menos havia o que se esperar.

Metamorfoses, n° 2

Cadáveres adiados


Boa parte dos poemas de Mensagem [1] traz personagens com glória em latência, isto é: personagens históricos “presentificados” que, consciente ou inconscientemente, estão prestes a dar um grande contributo à história portuguesa. Ao menos, à história portuguesa que Fernando Pessoa escolhe privilegiar. Dentro da ideia de predestinação, cumprem seu destino épico ou martirial. Se não o tivessem feito, cairiam sob a acusação de “D. Sebastião, Rei de Portugal”:

Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?

Interessante, porém, é observar que essa imagem surge, com outro sentido, em duas versões de um poema de Ricardo Reis  heterônimo pessoano que, pela via da imperturbabilidade e da inação, é o avesso da epopeia e é antítese, portanto, do D. Sebastião de Mensagem. Numa das variantes [2]:

Leis feitas, estátuas altas, odes findas —
Tudo tem cova sua. [...]
[...]
O que fazemos é o que somos. Nada
Nos cria, nos governa e nos acaba.
Somos contos contando contos, cadáveres
Adiados que procriam.

Para Reis, ser cadáver adiado não é opção, mas condição humana. Sendo o fim sempre o mesmo — a transformação em pó —, o melhor é evitar o desgaste antes da hora. Assim, se D. Sebastião, no poema “Segundo: O Quinto Império”, exclama: 

Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa,
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!

Ricardo Reis registra:

Feliz o a quem, por ter em coisas mínimas
Seu prazer posto, nenhum dia nega
A natural ventura!

Em última análise, porque já não lidam com a inconstância inerente à vida, os cadáveres é que são felizes

Felizes, cujos corpos sob as árvores 
Jazem na húmida terra,
Que nunca mais sofrem o sol, ou sabem  
Das doenças da lua.


Notas: [1] A edição que possuo da obra (e que aparece nas fotografias) é a de Cleonice Berardinelli (Rio de Janeiro: Edições de Janeiro, 2014), que respeita a ortografia da edição prínceps; aqui, porém, reproduzi e inseri os links para os poemas do Arquivo Pessoa, disponíveis online. [2] Os poemas de Ricardo Reis não têm títulos, mas, novamente, deixei próximos às citações os links para consulta. Ambas as variantes (a outra é esta aqui) também podem ser conferidas na edição de Luiz Fagundes Duarte, disponibilizada gratuitamente pela Imprensa Nacional.

Metamorfoses, n° 1

O sol que tudo altera
    
I

Tardes de verão, tardes de calor imenso... "O calor, como uma roupa invisível, dá vontade de o tirar". Bernardo Soares, semi-heterônimo pessoano [1], foi quem, numa mansarda lisboeta, registrou a frase cerca de cem anos atrás. Também registrou: "A vida real apoquenta-me como um dia de calor. Há uma certa baixeza no modo como apoquenta".

II

Bernardo Soares, mensageiro do tédio contemporâneo [2]; o tempo derretendo gota a gota, evaporando em seguida sem deixar vestígio. De tédio e calor, o Meursault de Camus [3], perturbando o equilíbrio do dia, mataria um árabe a sangue frio. Décadas depois, o entediado protagonista de Campo de sangue, escrito por Dulce Maria Cardoso, lembraria que “com o calor há sempre quem mate por razões alheias à vontade, o calor ferve o sangue que, uma vez derramado, é rapidamente pó, um pó que se entranha facilmente na calçada”. Bloom, o igualmente entediado anti-herói da antiepopeia Uma viagem à Índia, de Gonçalo M. Tavares, corrobora: “A luz mexe em tudo, mexe na loucura e no tédio (altera-os)”. Do que advir, portanto, a culpa deve ser do sol.


III

Uma das primeiras formas de tédio existencial, conforme Lars Svendsen em A filosofia do tédio, foi a acédia, uma espécie de letargia diabólica [4] que acometia os monges medievais. O meio-dia seria especialmente propício a ela. Sonolentos, afastados das suas orações e, em consequência, da presença divina, os religiosos não apenas cometeriam uma grande ofensa a Deus como, também, estariam suscetíveis a todos os outros pecados. Nos séculos XX e XXI, na literatura ocidental, a luz do sol, perdendo o símbolo de revelação intelectual que tivera no Renascimento e Iluminismo, readquire e atualiza essa ideia de tentação e maldade: na nova concepção, não há paraíso, não há utopia tecnocientífica, não há sentido moral na existência humana; só o que há de ser revelado é a perturbação em seu estado mais bruto. É tempo de anti-heróis: os homens não têm jeito. Apenas um pouco mais tecnológico, segue desvairado o carro de Faetonte.




Notas: [1] Livro do desassossego, Fernando Pessoa. [2] Abordei o tédio contemporâneo em minha dissertação de mestrado, da qual esta postagem é um derivado. [3] O estrangeiro, Albert Camus. [4] Assim considerada pelos religiosos, que a atribuíam ao daemonium meridianum, o "demônio do meio-dia".

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Criadora

Larissa Fonseca e Silva, 1998. Artista entre teceres e textos, doutoranda em Literatura Portuguesa (USP). "Crio com as pontas dos dedos, no raio do sol vejo a magia da poeira e sei que há sentido no decompor das coisas pois até os resquícios dançam". Registro aqui.