
Pouco antes de algumas internas da Appleyard College desaparecerem em Hanging Rock, o monte australiano onde realizavam o piquenique do Dia de São Valentim em 1900, o relógio de Miss McCraw parara ao meio-dia. Esse horário é simbólico. Se o sol suspenso em seu ponto mais alto fora, durante a Idade Média, associado a um torpor demoníaco (o daemonium meridianum que acometia os monges durantes as suas orações), o dia dividido ao meio pode sugerir também uma divisão espacial: uma fresta entre o mundo visível e o invisível.


Nesse filme dirigido por Peter Weir — Picnic at Hanging Rock [1975], baseado no romance homônimo [1967] de Joan Lindsay —, as cenas são acompanhadas por uma flauta de Pã, o que acrescenta uma sutil associação entre o deus telúrico grego e o sumiço das meninas. Pã, afinal, é aquele que está por detrás do véu entre o sonho (mundo visível, correspondendo à caverna platônica) e a realidade (mundo invisível), segundo uma definição que aparece no romance O Grande Deus Pã [1894], de Arthur Machen. Assim, o deus gerador de pânico poderia também sequestrar os seres humanos de suas vidas terrenas.
As passagens para locais fantásticos pululam a mitologia, a literatura e o nosso imaginário de modo geral. Também as religiões: muitas delas veem a morte como passagem. Buscar a transcendência dos limites terrenos faz parte da natureza humana — o que Harold Bloom chamaria de nosso estado de "anjos caídos", em ensaio que leva exatamente esse nome [2007]. A queda de Adão, por seu turno, além de ser uma metáfora usada por Octavio Paz, em Os filhos do barro [1974], para assinalar a mudança de um tempo mítico (paradisíaco) para um tempo histórico (terreno e cristão), também veicula toda uma tradição de paraísos perdidos. Édens, Atlântidas, Eldorados... Há sempre um lugar melhor que se buscar, ou mesmo para onde voltar. Como na citação inicial do filme de Peter Weir, retirada do famoso poema [1849] de Edgar Allan Poe: "All that we see or seem / [i]s but a dream within a dream".