Escatologia

O ponto apinhado de gente e cercado de gente apanhando chuva. O ônibus não chega e chove e chove o ônibus não chega o apocalipse chega e não chega a condução. Serão quatro cavalos, e os quatro cavalos também hão de querer se abrigar sob este teto em que não cabe mais ninguém. Sob esta chuva eles se esquecerão da fome da peste da guerra da morte e pensarão, como todos, em como será bom estar em casa e retirar as meias molhadas enquanto a sombrinha seca molhando a cozinha toda. (Não é culpa das bestas que o apocalipse aconteça num tempo de tanta distração, não é culpa delas que bem no apocalipse chova tanto e se atrasem assim os planos de milhares de anos.) Os cavalos se espremerão para caber no ônibus quando o ônibus chegar, para isso chacoalharão de si os cavaleiros que trazem ― e estes que esperem o próximo ônibus e mais algumas gerações. A chuva cai encharcando as escrituras que se agarram, como os outros folhetos, às grades dos bueiros. Agarram-se as pessoas às barras do ônibus que chacoalha e se equilibra num frágil fio narrativo; e tudo o que é humano resiste um pouco mais. [São Paulo, 15 de setembro de 2023]

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Criadora

Larissa Fonseca e Silva, 1998. Nascida em Caldas, no sul de Minas Gerais, crescida dentre livros e montanhas. Mestra em Teoria Literária e Crítica da Cultura pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) e doutoranda em Literatura Portuguesa na Universidade de São Paulo (USP). "Crio com a ponta dos dedos, no raio do sol vejo a magia da poeira e sei que há sentido no decompor das coisas pois até os resquícios dançam." Registro e guardo aqui.