Um pássaro se atira do terraço de um prédio e a três metros do chão desiste de morrer: na manobra para cima, sobe mais sábio, sabe agora dar conselhos que seguem, porém, indecifráveis a nós. Da queda-ascensão do pássaro fico apenas carente das asas como ficaria da capacidade regenerativa das lagartixas ou das sete vidas de um gato. Talvez a maior vantagem dos animais que manobram a morte, forjam a morte ou ressuscitam seja, simplesmente, a inconsciência das coisas. Seres apenas sendo, lidando com abismos concretos e indiferentes à sabedoria que lhes atribuo. Eu vivo contemplando as quedas e buscando sentidos, o pensamento falante, as muitas vozes do pensamento que a meditação às vezes ajuda a calar. (Mas no fundo do meu silêncio há sempre um pássaro que salta e escapa, uma lagartixa que espera e um gato em posição esfíngica que observa, enigmático, ao pássaro, à lagartixa e a mim.) [São Paulo, 23 de março de 2023]