Aos outubros, como os tantos que, como eu, cresceram com influências estrangeiras, gosto de leituras sombrias que evoquem o medo. Aconteceu que, neste ano, a chegada da primavera com dias tão claros e quentes me deu uma inspiração outra, irmã da primeira: o terror, sim, mas o terror diurno, seja o sobrenatural (e a literatura e o cinema têm seus muitos exemplos) ou o psicológico.
Deste último, minha leitura mais recente, Paisagem com mulher e mar ao fundo, trouxe uma amostra vívida em sua primeira parte: o “pavor do tempo”, quando ele vem carregando um trauma às costas. No romance de Teolinda Gersão, Hortense, superando um luto em uma casa que foi se esvaziando, teme a chegada das quatro da tarde, o horário que marcou a notícia de uma grande perda. A plena luminosidade à beira-mar não impede a repetição cotidiana do medo, e a forma como ele é construído é, por si só, uma cena de horror:
“[O] momento aproximava-se, soube com terror, fechando os olhos, o momento de que ela conhecia já tudo e se anunciava sempre primeiro à distância por uma diferente coloração dos objectos, uma perda dos contornos das coisas, ou apenas por algo de extremamente vago, um outro cheiro na brisa, uma diferente ondulação na folhagem, um ligeiro encrespado no céu, se olhasse de repente da janela, ou algo de mais sombrio, difuso, angustiante, uma sombra crescendo, uma perda de memória, um peso desusado no corpo, um não mais conseguir levantar-se da cadeira, uma perturbação súbita da visão, sobretudo das coisas que ficavam perto; havia sempre então um tumulto na casa, como se as coisas deslizassem e mudassem de lugar por seu próprio risco, o relógio parava de repente, e se ela se forçasse a abrir os olhos veria que o tempo deixara de passar, se fossem seis ou mesmo cinco estaria talvez salva, chegaria em breve a noite e teria terminado mais um dia, mas seriam eternamente quatro horas e o tempo não iria continuar nunca [...].”
Referência: GERSÃO, Teolinda. Paisagem com mulher e mar ao fundo. Lisboa: O Jornal, 1982. p. 23, 34.