Lampejos

Ulisses, na volta da guerra de Troia, teria passado por uma terra à qual dera seu nome: Olisipo, atual Lisboa. Tomando a parte pelo todo, o herói homérico seria, pois, o fundador mítico do que viria a se tornar Portugal. Esse mito, porém, não está na Odisseia: surge e vai sendo moldado com o tempo, especialmente pelo desejo, durante o Renascimento, de um patriarca que enobrecesse a pátria. Ulisses firmava-se como opção ideal devido ao destino voltado ao mar ― como voltada ao mar está a terra portuguesa, com homens sempre partindo. Em A cidade de Ulisses, romance de 2011 escrito por Teolinda Gersão, o narrador-personagem Paulo Vaz comenta: “A história assentava como uma segunda pele no imaginário de Lisboa: Ulisses parte para a guerra e para o mar, deixando para trás a mulher e um filho. Ao longo dos séculos também nós vivemos essa história de mulheres esperando, sozinhas, de filhos crescendo sem pai. Foi assim nas cruzadas, nos Descobrimentos, na guerra colonial, na emigração, até o século XX”.

Ficam os idosos e as crianças, ficam as mulheres. No século XVI, em Os Lusíadas, Camões registra, no canto IV, o início da viagem de Vasco da Gama. Na praia de onde os nautas portugueses partem, uma mãe se lamenta (IV, 90):  “Por que me deixas, mísera e mesquinha? / Por que de mim te vás, ó filho caro, / A fazer o funéreo enterramento / Onde sejas de peixe mantimento?”. Outra mulher, uma esposa, prossegue o lamento feminino (IV, 91): “Por que is aventurar ao mar iroso / Essa vida que é minha e não vossa? / Como por um caminho duvidoso / Vos esquece a afeição tão doce nossa?”. No século XX, em diálogo com o texto de Luís de Camões, Fernando Pessoa escreve em “Mar Português” (Mensagem): “Ó mar salgado, quanto do teu sal / São lágrimas de Portugal! / Por te cruzarmos, quantas mães choraram, / Quantos filhos em vão re[z]aram! / Quantas noivas ficaram por casar / Para que fosses nosso, ó mar!”.

As duas obras canônicas, embora mostrem o sofrimento da empreitada marítima, não deixam de exaltar, por outro lado, o que se considera o sucesso dela: o que tem de aventura, valentia, conquista, virilidade. A água do mar, quando lida pelo viés do enfrentamento, ganha uma conotação masculina, conforme Gaston Bachelard em A água e os sonhos.

A terra, por simetria do símbolo, se feminiza. Maria Vitalina Leal de Matos, em Tópicos para a leitura de Os Lusíadas, já tinha apontado as possíveis leituras de "terra" e "mar" no poema camoniano. O mar se ligaria ao ensejo humanista da ousadia e da vitória do homem sobre a natureza. A terra, associada ainda ao período feudal, exaltaria a defesa territorial e familiar, bem como a obediência ao rei: por sua imagem de estabilidade e de segurança, funcionaria, assim, como polo feminino. 

Séculos após Camões, décadas depois de Pessoa e quase 30 anos antes de A cidade de Ulisses, Teolinda Gersão atualizava esses dois polos em Paisagem com mulher e mar ao fundo, obra de 1982 contextualizada no Estado Novo (1933-1974): o mar não é mais liberdade masculina, mas opressão ditatorial. Por mandos e desmandos de Salazar, homens são enviados em navios para matar e morrer em África. A obra tem como esse “fundo”, portanto, um mar que está em todos os lados, vigiando, assombrando, desestabilizando, “em todas as esquinas, ruas, varandas, escadas, labirintos, assomava sempre de repente o mar, o mar, o mar, de repente, entre duas paredes, duas portas, dois muros, dois batentes de janela, o mar como um espelho”. Para a mulher que perde o filho na guerra, o mar não é o espelho do céu do poema pessoano, mas um espelho mau e mentiroso a ser quebrado: “Partir o mar como se fosse um espelho”. No romance, o mar é depressão:

"[D]eixara de haver um centro no seu mundo e o mar calava sempre a sua voz para que só a voz dele existisse, a sua voz imensa, omnipresente, que trazia em si todas as vozes, mesmo as impossíveis, de repente na noite vinham todas bater contra a janela, porque para o mar não havia distância, estava em todos os lugares unindo tudo, a noite e o dia, o norte e o sul, a terra e o céu, o real e o irreal, a sua música vaga, insistente, entrava pelas fisgas, roçava os objetos sem tocar-lhes, pairava na casa, embalava a casa, parava o tempo, aquietava as coisas. Era uma voz que paralisava e entorpecia, e quem ficasse escutando acabaria por ceder ao encantamento, desceria a correr as escadas do mar e ficaria mil anos dormindo no fundo, o corpo transformado em pedra."


Referências: CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Introdução e notas de Alexei Bueno. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018. p. 282, 283. BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos — ensaio sobre a imaginação da matéria. 3° ed. Tradução de Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2018. GERSÃO, Teolinda. Paisagem com mulher e mar ao fundo. Lisboa: O Jornal, 1982. p. 21, 32, 59. GERSÃO, Teolinda. A cidade de Ulisses. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2017. p. 49. MATOS, Maria Vitalina Leal de. Tópicos para a leitura de Os Lusíadas. Coimbra: Almedina, 2014. PESSOA, Fernando. Mensagem. Apresentação, organização e ensaios de Cleonice Berardinelli. Rio de Janeiro: Edições de Janeiro, 2014. p. 55.

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Criadora

Larissa Fonseca e Silva, 1998. Nascida em Caldas, no sul de Minas Gerais, crescida dentre livros e montanhas. Mestra em Letras pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) e doutoranda em Literatura Portuguesa na Universidade de São Paulo (USP). "Crio com a ponta dos dedos, no raio do sol vejo a magia da poeira e sei que há sentido no decompor das coisas pois até os resquícios dançam." Registro e guardo aqui.