A noite, José Saramago (1922 - 2010). [Teatro português contemporâneo | primeira publicação: 1979, Portugal | minha edição: SARAMAGO, José. A noite. In: ______. Que farei com este livro? In: ______. José Saramago – obras completas, 2. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. p. 845-918.] A peça A Noite, de José Saramago, se passa nas horas iniciais da Revolução dos Cravos, entre a noite de 24 e a madrugada de 25 de abril de 1974. O cenário de uma redação jornalística oferece um microcosmo de Portugal à época, onde se confrontam simpatizantes do regime salazarista e aqueles que aguardam, ansiosos, pela queda da ditadura. Os dirigentes do jornal, pertencentes ao primeiro grupo e subordinados à PIDE e aos generais, defendem como "neutralidade de informação" a seleção e os recortes que fazem sobre o que deve ser publicado, conforme acusa Manuel Torres, redator da província. A ganância dos dirigentes também se confirma pela decisão destes de agradar a quem quer que tomasse o poder, desde que os lucros continuassem garantidos. A revolta de Torres com o chefe da redação bem se exprime neste trecho, simbólico das relações de poder que permeiam todas as sociedades capitalistas:
"Digo-lhe eu que não há objetividade. Digo-lhe eu que não há neutralidade. Quantos acontecimentos importantes para o mundo se dão diariamente no mundo? Provavelmente milhões! Quantos deles são selecionados, quantos passam pelo crivo que os transforma em notícias? Quem os escolheu? Segundo que critérios? Para que fins? Que forma tem essa espécie de filtro ao contrário, que intoxica porque não diz a verdade toda? E notícias falsas, quantas circulam no mundo? Quem as inventa? Com que objetivos? Quem produz a mentira e a transforma em alimento de primeira necessidade? A informação não é objetiva, e quanto a neutralidade, é tão neutral como a Suíça. Ou será possível que você ignore as primeiras letras deste alfabeto? O dono do dinheiro é sempre o dono do poder, mesmo quando não aparece na primeira fila como tal. Quem tem o poder, tem a informação que defenderá os interesses do dinheiro que esse poder serve. A informação que nós atiramos para cima do leitor desorientado é aquela que, em cada momento, melhor convém aos donos do dinheiro. Para quê? Para que lhes dêmos mais dinheiro a ganhar. Servem-se de nós, e nós servimo-los a eles. [...] A quem tudo isto deveria ser explicado, não era a você, era a toda essa gente que anda na rua, que compra o jornal e o lê, e acaba por acreditar mais no que ele diz do que naquilo que os seus próprios olhos veem" (p. 881-882).